Duas décadas atrás, Rafael Dolzan e Rodrigo Dal'Asta passavam as tardes na sala da casa de Alexandre Vrubel, no bairro do Portão, em Curitiba. Recém-saídos do curso de Ciências da Computação da Universidade Federal do Paraná, os três tentavam fazer o sonho de trabalhar com jogos de computador virar uma realidade. No final de 1997, tinham um demo que já rodava. Era o embrião de Outlive, o jogo de estratégia que deveria ter colocado o Brasil no mercado AAA de games, mas parou no quase.

No começo do ano seguinte, a esse grupo se juntaram Daniel Dolzan, irmão de Rafael, e Henry Baggio, também egressos da mesma faculdade. Juntos, os cinco fundaram a Continuum Entertainment e recomeçaram do zero o desenvolvimento de Outlive. O objetivo era ambicioso: sem muito dinheiro, com uma equipe reduzida e fora dos mercados tradicionais do setor, os sócios queriam lançar um jogo que rivalizasse em qualidade com séries como Warcraft e Command & Conquer, nomes responsáveis por tornar o gênero de estratégia em tempo real num dos mais populares do final dos anos 1990.

Para fechar o time, contrataram Maurício Valle e os estagiários Rafael Dubiela e Marcos Colete – todos para a equipe de arte. Fora a distinção entre donos e empregados, não havia hierarquia. “Nessa época de desbravamento, não existia divisão de game designer, programação, arte. A divisão era sabe fazer isso, então faz. Metodologia de produção não existia. Se precisava fazer um editor de mapas, então bora fazer um editor de mapas”, conta Dubiela, que começou a trabalhar em Outlive com 21 anos – a média geral da equipe era pouco acima disso.

“Nós trabalhávamos numa sala aberta. Se alguém tinha dúvida, levantava e perguntava, era uma gestão horizontal que criava situações curiosas, como eu, estagiário, com mais poder de decisão que um programador sobre determinada questão, por exemplo. No fim das contas, éramos todos amigos”, lembra Dubiela.

Na prática, no entanto, Alexandre Vrubel assumiu a liderança do projeto. Ainda assim, o envolvimento dele com aspectos pouco ligados ao desenvolvimento em si mostra como Outlive foi levado na raça: “Nós mesmo fizemos as vozes do jogo, e alguns efeitos sonoros até. Eu fui o dublador de vários personagens, do dominador, do lança-chamas. Ficava mudando minha voz e aplicava uns efeitos para diferenciar”, explica Vrubel. “Foi divertida essa parte, as vozes ficaram meio cômicas.”

A ousadia chamou atenção. Com uma internet ainda insipiente, os poucos sites que cobriam jogos no Brasil começaram a seguir passo a passo o desenvolvimento do jogo. “Na época, não existia uma indústria do tipo no país, aí aparece a Continuum e todo mundo da comunidade de games se anima a ver uma empresa brasileira desenvolvendo um jogo muito próximo ao padrão que a gente estava acostumado”, conta Théo Azevedo, hoje editor do site UOL Jogos, e, à época, dono de uma página chamada Théogames. “Eu encampei a saga do Outlive, a gente cobria cada avanço, cada progresso.”

Eu fui o dublador de vários personagens, do dominador, do lança-chamas. Ficava mudando minha voz e aplicava uns efeitos para diferenciar - Alexandre Vrubel, líder do projeto de Outlive

Logo, esse destaque ganhou reflexos nos veículos mais tradicionais da mídia e a Continuum virou uma sensação. A Gazeta do Povo, principal jornal do Paraná na época, dava uma página sobre o Outlive por mês. Folha de São Paulo, Estadão, Veja, Exame, Istoé, todos entraram na onda – até o New York Times. No começo de 2001, Outlive foi lançado no exterior – ele já estava disponível no Brasil desde o fim do ano anterior.

Para quem olhava de fora, parecia impossível dar errado. Mas teve um StarCraft no meio do caminho.

A concorrência com a Blizzard

Publicado no começo de 98, enquanto o desenvolvimento de Outlive estava no início, StarCraft se adiantou em anos à temática e estilo do brasileiro. A diferença é que enquanto por aqui a Continuum trabalhava num esquema faça-você-mesmo, seu "concorrente" tinha o peso financeiro e a expertise da Blizzard por trás. Foi um sucesso: além de mais de dez milhões de cópias vendidas até hoje, foi em StarCraft que surgiu o embrião dos eSports, com uma forte cena competitiva profissional de jogos online.

“A nossa linha de raciocínio era fazer um Warcraft ambientado no futuro e a informação não era de tão fácil acesso quanto hoje, então não conhecíamos o desenvolvimento do StarCraft”, diz Rafael Dubiela. “Quando lançou, ficamos com medo, claro. Era igualzinho, e eles tinham três raças, que era nossa ideia original. Diminuímos para duas porque não tínhamos braço para tanto.”

Em StarCraft, os humanos encontram duas raças alienígenas quando tentam colonizar planetas distantes no século XXV. Em Outlive, humanos e robôs disputavam a hegemonia da exploração de recursos naturais no sistema solar em meados do século XXI. Na prática, ambos eram jogos de estratégia e ficção científica com um visual futurista.

Com o financiamento dos pais dos cinco sócios e apoio da Incubadora Tecnológica do Paraná (Intec), a Continuum continou o trabalho no Outlive a despeito das semelhanças. Na realidade, a ideia da equipe era trazer algumas inovações ao gênero, mesmo se comparado ao StarCraft: um número ilimitado de unidades selecionáveis, maior capacidade de jogadores no multiplayer e uma inteligência artificial refinada.

Os detalhes da trama eram construídos conforme avançava o progresso do desenvolvimento. A cada nova missão, a equipe se reunia para discutir o que aconteceria naquele mapa. “Era então que começava de fato a criação dos personagens. Eu cheguei a fazer às duas da tarde um personagem que foi criado às dez da manhã”, conta Dubiela. “Era o modelo do Joseph, o cientista. Olhando hoje, ficou uma bosta, mas na época foi uma superação, nunca tinha feito um rosto humano.”

Enquanto o jogo se aproximava de estágio final, a Continuum começou a procurar uma empresa que topasse fazer a ponte com o mercado internacional. Depois de enviar uma demo para várias distribuidoras e não obter nenhuma resposta, finalmente a Take-Two Interactive demonstrou interesse no jogo. Gigante do setor, na época a Take-Two já tinha no seu portfólio séries como Duke Nukem e GTA (ainda no número 2, dá para acreditar?). Os brasileiros ficaram animados.

Jamie Leece, então vice-presidente de distribuição e desenvolvimento de negócios da Take-Two, lembra que a equipe da empresa – inclusive ele próprio – testou o jogo e achou divertido. Além disso, eram os anos de auge dos RTS e eles ainda não tinham um hit do gênero. Outlive parecia um bom candidato a preencher esse papel. “O fato da equipe ser do Brasil e desconhecida era um fator de risco para nós, mas no final achamos que existia uma qualidade no jogo que valia a aposta”, relembra o executivo, hoje vice-presidente da divisão de jogos da Major League Baseball (a liga de basebol americana), por e-mail.

Segundo o acordado entre as duas empresas, a Continuum distribuiria Outlive no Brasil como bem entendesse, enquanto a Take-Two ficaria responsável pelas vendas ao redor do mundo. Como o jogo já estava pronto, o único investimento dos americanos foi com localização para outras línguas.

A decepção nas vendas

“Aí vem a parte triste da história. Enquanto desenvolvíamos tudo era alegria e esperança. O jogo era bom e iríamos recuperar o investimento, ganhar dinheiro e começar o desenvolvimento de jogos de nível ainda maior”, diz Vrubel. “O que aconteceu foi que no Brasil iniciamos as vendas devagar. Não tinha estrutura de distribuição. No exterior, comercialmente foi um fracasso”, lamenta.

Numa época em para jogar algo era quase obrigação possuir uma cópia física, a inexperiência da Continuum foi determinante para que o jogo não ganhasse tração nas vendas: o acordo de distribuição demorou para sair e, quando foi acertado com a Abrasoft, não era tão fácil encontrar o Outlive à venda. Ainda assim, todas as dez mil cópias produzidas foram vendidas – mesmo que tenha demorado alguns anos para isso acontecer.

No exterior, por outro lado, a boa estrutura de distribuição da Take-Two não foi o suficiente para superar uma recepção negativa da crítica especializada. Em resumo, o consenso era de que Outlive era um clone de StarCraft – a média do jogo no Metacritic é 59. “O mercado era especialmente competitivo na época e isso ocorreu bem quando os responsáveis pelas resenhas estavam deixando de ser críticos verdadeiros para se tornarem escritores preocupados com diversão, então nem sempre os desenvolvedores e produtos recebiam um tratamento justo”, afirma Jamie.

Outlive é a experiência mais próxima de um AAA que conseguimos colocar no mercado - Théo Azevedo, jornalista de games que cobriu o lançamento de Outlive 

De qualquer forma, toda a tiragem inicial da Take-Two foi vendida: 40 mil cópias. E foi só. Por esse número, a Continuum recebeu US$ 20 mil. Com um investimento estimado na produção do jogo entre R$ 100 mil e R$ 130 mil, é fácil perceber que a conta não fechou.

“Talvez tenha sido o primeiro choque para a indústria de games nacional perceber que tanto faz o jogo ser brasileiro ou não, não vai te ajudar em nada”, diz Théo Azevedo. Apesar de ressaltar que, após o fim do romance ufanista da comunidade, os defeitos de Outlive ficaram mais aparentes, para o veterano do jornalismo de games, o título foi um marco. “Outlive é a experiência mais próxima de um AAA que conseguimos colocar no mercado”, sacramenta o jornalista. 

O hype em torno de Outlive, no entanto, tornara a Continuum conhecida o suficiente para que existisse uma demanda para o desenvolvimento de jogos comerciais por parte da empresa. Na primeira metade dos anos 2000, eles lançaram games do Big Brother Brasil, McDonald’s, No Limite, Xuxa e os Duendes, Smiligüindo, entre outros. Era um nicho interessante do ponto de vista comercial (e que explodiria anos depois, com o lançamento do iPhone), mas estava longe do sonho dos sócios.

O fim do sonho

Para dar uma cartada final na busca desse sonho, em 2004 a empresa cessou as atividades com jogos ligados a marcas para desenvolver um novo projeto: um RPG isométrico de ação chamado Inferno. Aprovado na Lei Rouanet, mas sem conseguir investidores por aqui, o protótipo chegou a despertar atenção do desenvolvedor American McGee, que trabalhou em Doom, Quake e estava em alta depois de ter lançado American McGee’s Alice. Em 10 de janeiro de 2005, no entanto, ele deu para trás. No dia 15, a Continuum Entertainment fechou. Cada um dos sócios saiu da jornada com dívidas de R$ 20 mil com a família.

Foi um trauma - no ano seguinte, eles começavam a passar em concursos públicos. “O baque foi grande, todo mundo traumatizou. Nós fizemos das tripas coração durante oito anos de empresa, tudo tentando fazer essa ideia virar realidade. E quando virou realidade, deu errado”, lembra Alexandre, hoje perito do Instituto de Criminalística do Paraná. “Depois, ninguém queria saber mais disso.”

Assim como Alexandre, os outros quatro sócios da Continuum trabalham em órgãos públicos. Na realidade, da equipe de desenvolvimento do Outlive, o único que continuou na área tempo o suficiente para ver o boom que o mercado vive hoje no Brasil foi Rafael Dubiela, coordenador de Tecnologia em Jogos Digitais do Centro Tecnológico Positivo.

Excitado enquanto fala da experiência com a criação do jogo de estratégia, Dubiela diz que, para ele, o sonho ao redor do jogo não acabou. “Eu lembro que as primeiras coisas que fiz foram frames de estruturas destruídas para alguns mapas. Fiz um mapa interno gigantesco para uma nave que os jogadores nem poderiam entrar no final das contas. Copiei os prediozinhos do catálogo de uma construtora de Curitiba, que ficavam no bairro Bigorrilho, para fazer os idols dos terrenos”, recorda. “Outlive é uma promessa de vida. Eu e os meninos brincamos que quando formos velhos, barrigudos e barbudos vamos fazer o dois nem que seja por diversão.”